O que é que faz os videogames serem o que eles são? E o que exatamente é isso?
O cinema é uma forma mista,
certo? Em essência, sendo purista e levemente absurdo pode-se dizer que cinema
são imagens em movimento. Não deixa de ser verdade, são milhares de quadros (que
são, na prática, fotos) se alternando e criando a ilusão de movimento. Mas o
que vemos quando assistimos a um filme não é só esse purismo das imagens em
movimento. Nossos filmes têm música, atuação, efeitos sonoros e visuais etc.
Onde fica então o que torna o Cinema uma “arte” de fato? Por que é que o
circuito interno do banco não é cinema? Uma possível resposta (e uma que eu
apoio) é que o cinema se faz como arte original pela
edição. É a edição das imagens gerando significado e simbolismo (nascida
lá no começo do século XX com
Serguei Einsenstein) que faz o cinema se
consolidar como uma nova expressão artística. Com a visão de um cineasta para
um trabalho de edição até mesmo o circuito interno do banco pode ser
transformado em um filme.
E os quadrinhos? São texto +
imagem, certo? Então um pôster é quadrinhos? O Rótulo da minha Fanta Uva é quadrinhos?
A questão é a mesma, e a resposta é obviamente “não”. Lendo
Scott McCloud e
Will Eisner é possível ver que a arte dos quadrinhos repousa também na edição, de
forma semelhante ao cinema e, de forma original, na transição entre os quadros.
Na sarjeta (o espaço vago entre quadrinhos) acontece a mágica que dá movimento
e vida a cada painel e o trabalho do(s) quadrinhista(s) é manipular imagem,
texto e transição para criar significado.
Onde então repousa o específico
dos games? Como videogames criam significado e expressão artística de maneira
própria? O que é a forma dos games? Gritar
“interatividade!!” é muito fácil e vago (o elevador do meu prédio é interativo),
portanto vamos tentar complexificar a coisa um pouco.
Os exemplos anteriores do cinema
e dos quadrinhos foram um jeito de cozinhar o argumento de que os videogames
são uma forma mista. E bota mista nisso! Cinema, música, pintura, literatura (os
livros de Elder Scrolls e a enciclopéda de Mass effect são ótimos exemplos),
quadrinhos etc. Os games emprestam características de tudo quanto é arte para
se criarem. Então interatividade é sim uma resposta razoável, uma vez que essas
outras formas não a apresentam (blábláblá livros-jogo, ok! Mas acho mais fácil
considerá-los um jogo literário do que literatura interativa). No entanto, o
que eu quero propor aqui é que há a especificidade da
edição da interatividade. Não é
qualquer
coisa que você faz que pode ser chamada de Call of Duty, mas sim um certo conjunto de atividades
compilado de uma certa maneira com uma certa apresentação. Nenhum game é uma
simulação absoluta de tudo (o que aliás é uma complicação filosófica só,
como pirou Jorge Luis Borges...) mas sim um recorte de experiências que transmitem a
visão dos autores.
O que os jogos em geral criam,
para mim, são instâncias – uma maneira que eu arranjei de dizer “espaço” sem me
referir a nada físico... A maneira mais eficiente de enfiar a bola no gol é pegando ela e saindo correndo, mas dentro do jogo de futebol há restrições de movimento e conduta
baseadas nas regras do jogo. Esse sistema de conduta e objetivos é o que gera o
jogo de futebol. A questão para mim é que esse sistema gera um espaço
temporário em que o mundo funciona de um certo modo e que esse processo gera
significado.
Uma amiga certa vez foi a uma
oficina de teatro (se não me falha a memória...) de uma galera de esquerda e o
pessoal propôs um exercício. Tratava-se da velhíssima dança da cadeira: a
música para, todo mundo senta e quem ficar de pé lascou-se. Jogaram até
terminar. Logo em seguida modificaram o esquema: parando a música todos tinham
que sentar ou todos perdiam e a cada rodada tirava-se uma cadeira. No primeiro
caso o jogo exclui para gerar um único vencedor; no segundo, o grupo como um
todo deve se esforçar para nunca excluir. O que era competição se torna
cooperação, o que era hierarquia se torna um grupo unido por um objetivo.
Nenhuma palavra ou imagem precisa ser usada para que essa mensagem chegue aos
jogadores, a interação com um sistema
gerou esse significado.
Os videogames funcionam da mesma
maneira, mas com o adicional dos elementos de outras tantas artes, como cinema,
música, pintura, etc. Jogar Space Invaders é matar aliens, mas o mesmo jogo
pode ser reproduzido fazendo a nave do jogador e as dos inimigos serem qualquer
outra coisa. Se o game for recriado com uma nave claramente norte-americana atirando
contra vários invasores mexicanos, por exemplo, qualquer um vai associar o
conjunto ao antagonismo dos EUA contra os imigrantes. O sistema de Space
Invaders define, através de ações do jogador, o antagonismo entre as duas
forças. Os de cima são muitos e querem destruir o de baixo, que deve destruir
para se manter vivo. Nesse exemplo hipotético, a casca de imagens aplica o
sistema a um contexto simbólico, criando um significado novo.
Acho que é possível então chegar
a esses dois elementos básicos dos games como forma expressiva: os sistemas que
definem a ação do jogador dentro da instância do jogo – e que chamo de experiência do game; e a “casca” feita
de outras artes, que envolve e molda o significado desses sistemas – que optei
por chamar de apresentação. Da
dialética entre esses dois elementos surge o que chamamos de jogo.
Há, no entanto, duas observações
a serem feitas. Primeiro vejamos Tetris. Trata-se de um dos games mais
influentes e universais da história, tendo se alastrado feito um vírus por todo
tipo de plataforma e atingido todo tipo de gente. No entanto ele não tem
cutscenes, nem gráficos elaborados, nem
músicas geniais. Um dos primeiros protótipos que
Alexei Pajitnov criou de
Tetris usava colchetes para criar as formas usadas no game. T
etris poderia até ter uma
apresentação aplicada em si - poderia ter as peças transformadas em placa
bacteriana e a moldura em dentes, sei lá!! - mas a verdade é que ele não
necessita de apresentação nenhuma para funcionar nem para passar significado
através da experiência de jogo. Disso podemos observar que, no limite, jogos são
sistemas: não é necessário atuar nem se vestir de coisa alguma para brincar de
pega-pega, mas é possível dar novo significado à brincadeira se coisas assim
forem acrescentadas. É então da interação entre a experiência criada por um
jogo e a apresentação associada a essa experiência que se constitui a forma dos games. Embora
seja possível criar sistemas-jogo sem apresentação quase que nenhuma, indo
ao extremo da abstração por símbolos matemáticos ou linhas ultra-simplificadas, de qualquer maneira estamos gerando essa dialética – uma vez que a opção por extirpar a
apresentação é uma escolha estética mesmo assim.
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Primeira versão de Tetris no Electronika 60, computador soviético |
Em segundo lugar, é importante
sempre lembrarmos que, no limite, videogames são jogos, nascem do mesmo lugar na
nossa cabeça e funcionam do mesmo jeito que Xadrez, Pega-pega e Futebol. Game designers
praticam seu raciocínio criando jogos de tabuleiro e de cartas porque os princípios
são os mesmos. O Jogo, com J maiúsculo, enquanto elemento formador da cultura, é de
onde nascem os jogos (em sentido restrito, como Damas ou Amarelinha) como nós os conhecemos
(esse termo e essa relação são descritos maravilhosamente pelo historiador Johann Huizinga em Homo Ludens). Os videogames são um novo tipo
disso e ganham especificidades devido à sua natureza eletrônica. O computador
possibilita todo tipo de simulação – é possível simular com modelos 3D qualquer
tabuleiro imaginável e com a programação adequada recriar quaisquer sistemas.
É exatamente isso que os videogames fazem, só que como forma original eles vão
além de seus pais analógicos através das suas possibilidades digitais. É irreal
criar um tabuleiro de Zombicide (se não jogou, vá jogar!) com dezenas de quilômetros
quadrados, mas é perfeitamente razoável ter um mundo jogo dessa envergadura em
GTA e Skyrim. Não é razoável imaginar lançar centenas de dados de dano para um
ataque em um RPG de mesa, mas um computador faz essa conta em milésimos de
segundo. As possibilidades eletrônicas de simulação expandem de maneira
quantitativa as características dos games tradicionais, ao limite que a mudança
se torna qualitativa.
Os limites dessa dialética
interna dos games estão, e sempre estarão, sendo constantemente testados, assim
como em qualquer outra forma expressiva. Tivemos o renascentismo, o
impressionismo, o abstracionismo nas artes plásticas. Nos games também já
tivemos certos movimentos que vieram e enfraqueceram: como a era dos games
estilo arcade, e a força imensa que os JRPGs tiveram na geração 16 bits e que
não tem mais. A nossa arte tem buscado se consolidar cada vez mais e certos
elementos já vem se mostrando fortes o suficiente para durar, como as
narrativas de cunho “cinematográfico”, a jogabilidade de tiro FPS, os mundos abertos etc. Há uma série de ênfases que surgem com a indústria e com a
inovação técnica e estética criada pelos desenvolvedores, sejam de vanguarda,
sejam conservadores.
Essa é
uma opinião, entretanto é uma opinião construída com muita leitura e muita
experiência pensando em arte, em games e em ciências humanas, então espero que
não seja refutada automaticamente. O que quis aqui foi tentar acrescentar
alguma coisa nos debates tradicionais como “games são arte?” ou “narratologia
versus ludologia” (esse é bem forte no meio acadêmico de estudo de jogos...
qualquer hora eu apresento os dois lados por aqui). Sendo otimista espero que alguém
puxe um debate – mesmo que inflamado. Nada como ser pressionado para ver o quão
bem estamos para nos defender. Também serve para introduzir um pouco do meu
jeito de enxergar e analisar games, que ainda pretendo exercitar bastante por
aqui. Espero ter acrescentado alguma coisa para suas reflexões.
Perdão pelo post longo. Aqui está
o Darth Vader brincando com gatinhos pra me redimir: